Site  Google 
Publicada em 18 de junho de 2016

Tags: ,
Execução de não fazer

O processo, como instrumento que é para a obtenção da prestação jurisdicional correspondente à realização do direito, somente obtém êxito integral em seu mister quando for capaz de gerar, na prática, resultados idênticos aos que decorreriam do cumprimento natural e espontâneo das normas jurídicas. Daí dizer-se que, proibida a autotutela, o processo ideal é o que dispõe de mecanismos aptos a produzir ou a induzir a concretização do direito mediante a entrega da prestação in natura. E quando isso ocorre, ou seja, quando se proporciona, judicialmente, ao titular do direito, a obtenção de tudo aquilo e exatamente daquilo que pretendia, há prestação de tutela jurisdicional específica(1). Nesse ponto, assume particular relevância essa espécie de tutela – entendida como o conjunto de remédios e providências tendente a proporcionar, àquele em cujo benefício se estabeleceu a obrigação, o preciso resultado prático que seria atingido pelo adimplemento(2). Assim, como afirma Flávio Luiz Yarshell, “o próprio conceito de tutela específica é praticamente coincidente com a idéia da efetividade do processo e da utilidade das decisões, pois nela, por definição, a atividade jurisdicional tende a proporcionar ao credor o exato resultado prático atingível pelo adimplemento” (3).

No que se refere à tutela das obrigações de fazer ou não fazer, previstas nos arts. 878 a 883 do Código Civil, que consistem em comportamento omissivo ou comissivo do obrigado, o Código de Processo, em sua versão primeira, apresentava-se longe do modelo ideal, eis que notoriamente destituído, em grande numero de situações, de meios eficientes para prestar a tutela específica. Os instrumentos disponíveis eram, ou limitados quanto à eficácia, ou restritos a apenas algumas daquelas obrigações. Como exemplo: em se tratando de obrigação cujo objeto pode ser atendido não somente pelo obrigado, mas também por terceiro (obrigação de fazer fungível), o Código regulou a forma para que a prestação específica fosse atendida pelo terceiro (art. 634), ou mesmo pelo próprio credor (art. 637), à custa do devedor, apenas operacionalizando os preceitos contidos na norma material civil. Igualmente, em se tratando de obrigação de concluir um contrato ou de prestar declaração de vontade (obrigação de fazer infungível), o legislador processual substituiu o ato do devedor relutante pela ação estatal, para suprir a abstenção daquele, dispondo que a própria sentença de procedência produziria “o mesmo efeito do contrato a ser firmado” (art. 639) ou da “declaração não emitida” (art. 641), mecanismo que encerrava nítida tutela específica. Quanto às demais situações, a obtenção da tutela específica não era escorada por meios coercitivos eficientes, resolvendo-se o inadimplemento sempre pelo sucedâneo pecuniário.

Assim, permaneciam ao desabrigo de qualquer forma eficaz de proteção do direito à prestação específica um grande número de obrigações de fazer e, de um modo geral, de não fazer. No tocante a estas últimas – que são, por natureza, infungíveis, já que a prestação específica consiste exatamente no comportamento omissivo a ser tomado pelo próprio obrigado – não havia em nosso ordenamento jurídico, mormente na seara processual, um mecanismo que inibisse, satisfatoriamente, o evento lesivo. Ao credor ameaçado apresentava-se, como alternativa heróica, buscar uma sentença condenatória, prolatada em processo de conhecimento, já inútil a coibir a anterior consumação da ofensa.

Neste aspecto, o Código de Processo Civil de 1973 apresentou, como afirma Barbosa Moreira, um retrocesso em relação à codificação anterior, pois:

…conhecendo o expediente adequado, furtou-se curiosamente a fazer dele o uso amplo que lhe sugeriam a política jurídica e a própria tradição do direito brasileiro, já chegada no Código de 1939 a grau de aprimoramento bastante para produzir uma figura genérica de tutela do credor, em matéria de obrigação de fazer e de não fazer, construída sobre o esquema de preceito initio litis, com aplicação imediata da sanção cominada, no caso de descumprimento: a ação cominatória do art. 302, XII. Restringiu-se de modo notável, na reforma processual, à simples proteção da posse e da propriedade; fora desse âmbito privilegiado, o processo de conhecimento disciplinado no vigente estatuto afigura-se impotente para tutelar em forma preventiva, e portanto específica, com eficácia prática, as posições jurídicas de vantagem a que correspondam obrigações negativas no sentido lato posto no início (…) e a carência é tanto mais séria quanto menos satisfatória, em inúmeras situações excluídas (basta pensar nas de conteúdo não patrimonial), a tutela meramente sancionatória ou repressiva(4).

Ausente, pois, um mecanismo adequado para a obtenção da tutela específica nos casos aludidos, um seguimento expressivo da doutrina do processo civil recomendava, a despeito de sua natureza técnica, o uso da ação cautelar inominada, com supedâneo nos arts. 798 e 799 do Código de Processo Civil. Esta recomendação, pelo que demonstrou a experiência forense, foi adotada em parte, com um aspecto adicional: ante a ameaça de inadimplemento de obrigações de não fazer, utilizou-se, com freqüência, a via da ação declaratória (para aparentemente obter a certificação da existência da obrigação) acompanhada ou precedida da ação cautelar inominada, esta fadada a antecipar efeitos da tutela de conhecimento, notadamente, a expedição de ordem de abstenção.

Com o advento da Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994, o panorama foi substancialmente alterado: sem eliminar as técnicas de tutela jurisdicional até então existentes, deu-se nova redação ao art. 461 do Código de Processo Civil, em cujo caput ficou estabelecido que “na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará as providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”. E, nos termos do § 1º, “a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente”. Para tornar possível a prestação da tutela específica, o legislador conferiu ao juiz poderes para “impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito” (§ 4º). Estabeleceu, ainda, que “para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial” (§ 5º).

A novel redação do art. 461 do CPC, transladado, praticamente na íntegra, do art. 84 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), trouxe, como se percebe, inovações expressivas, todas fundadas no princípio da maior coincidência possível entre a prestação devida e a tutela jurisdicional entregue. No sistema anterior, a alternativa oferecida ao credor para a impossibilidade de obter a tutela específica era a de converter tal prestação em indenização por perdas e danos. Agora, nova alternativa se apresenta: a de substituir a prestação específica por outra que assegure o “resultado prático equivalente ao do adimplemento”. Ao se propor ação com o objetivo de obter o cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer há nela embutido, como pedido implícito, o da designação de outras providências que assegurem referido resultado prático, de modo que a compensação pecuniária somente se dará se assim expressamente requerer o autor, ou se “impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente” (§ 1º).

Esta recente sistemática adotada pelo legislador, integrando ao ordenamento processual novas espécies de direito material – que não se coadunam com a prática meramente ressarcitória –, privilegiando a máxima chiovendiana de efetividade da função jurisdicional, estabeleceu uma nova ordem de prioridades, onde a tutela jurisdicional busca em primeiro plano a tutela específica da prestação devida; na impossibilidade da prestação in natura, o resultado prático equivalente e, em último caso, a reparação por perdas e danos.

A relevante valorização que se deu à busca da tutela específica está acentuada nos dispositivos que conferem ao juiz uma espécie de “poder executório discricionário”, habilitando-o a utilizar, inclusive de ofício, além dos mecanismos nominados nos §§ 4º e 5º, outros mecanismos de coerção ou de sub-rogação inominados, aptos a produzir a entrega específica da prestação devida ou o resultado prático equivalente, desde que, por óbvio, juridicamente legítimos.

Outra questão de suma importância, é o caráter emergencial que impregna a tutela específica das obrigações de fazer ou não fazer e que a coloca pari passu com as demais tutelas provisórias de urgência.

Esta característica inerente à tutela específica das obrigações de fazer ou não fazer, como se observará, está calcada na assertiva de que a demanda pela tutela específica possui um conteúdo de satisfatividade tal, que sua concessão in limine litis confunde-se com a própria tutela de mérito.

Com efeito, a compreensão pacífica dos estudiosos do direito processual civil brasileiro identifica, na própria demanda pela tutela específica, um conteúdo eminentemente emergencial na busca pela prestação in natura da obrigação, sob pena de ineficácia da tutela jurisdicional postulada, pois, não raro, o requerimento deduzido em juízo sugere uma resposta imediata do juiz para que ordene o cumprimento de obrigação ou a abstenção específica, em caráter provisório e sem que haja uma cognição exauriente. Assim, determina o legislador pelo § 3º: “sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente, ou mediante justificação prévia, citado o réu” e, da mesma forma que na antecipação de tutela do art. 273 do CPC, indica que “a medida poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada”.

 Eis aí o elemento de convergência entre a antecipação dos efeitos da tutela de mérito, instituída como tutela provisória pelo art. 273 do CPC, e a tutela específica do art. 461 do mesmo diploma processual.

 Ambas estas técnicas de tutela, como afirma J. E. Carreira Alvim, “são modalidades de tutela diferenciada, cujo objetivo é satisfazer uma pretensão material que, de outro modo, estaria comprometida pela natural demora na conclusão do processo” (5).

Na prática, entretanto, não se tem feito a devida distinção entre essas espécies de tutela jurisdicional, tratando-se a tutela antecipatória como tutela específica e vice-versa. Não obstante as distorções na aplicação destes institutos processuais, esta diferenciação é de suma importância, porquanto dela dependerá a incidência ou do art. 273 (tutela antecipada) ou do art. 461 (tutela específica) do CPC, cada qual com seu âmbito de aplicação rigorosamente definido.

O melhor critério para se delimitar uma e outra forma de tutela é proceder por exclusão: aquilo que, em tese, não se comportar no âmbito da tutela específica das obrigações de fazer e não fazer (art. 461), comportar-se-á no da tutela antecipada (art. 273). Assim, qualquer pretensão envolvendo obrigação de dar lato sensu (entregar, restituir) cabe no âmbito desta(6), ou seja, as pretensões embasadas na obrigação de dar coisa certa (arts. 863 a 873 do Código Civil) ou incerta (arts. 874 a 877 do Código Civil) estão sob o alcance do art. 273 do Código de Processo Civil, já as pretensões embasadas nas obrigações de fazer (arts. 878 a 881 do Código Civil) e de não fazer (arts. 882 e 883 do Código Civil) restam sob o alcance do art. 461 do Código de Processo Civil, nada obstando, contudo, que haja uma aplicação sistemática e integrada dos dois institutos.

As dificuldades de estabelecer-se, em certos casos, os exatos limites entre as pretensões embasadas nos arts. 273 e 461 determinam, muitas vezes, o ajuizamento de uma ação por outra, pedindo o autor a tutela antecipada quando se trata, na verdade, de tutela específica, ou vice-versa. Constituindo técnicas de tutela de mesma natureza (urgência quanto à pretensão material), destinadas à satisfação do direito num momento diverso daquele considerado adequado, que seria o da sentença (cognição exauriente), a doutrina assevera a possibilidade de conversão de uma espécie de tutela em outra, sem a necessidade de emenda da inicial. Esta conversão, aliás, não afronta o princípio da demanda, mesmo porque o que caracteriza a pretensão material e lhe dá conteúdo é o pedido, na sua substância, e não o modus postulandi, segundo o melhor entendimento doutrinário na seara processual.

De modo contrário, todavia, não poderá haver esta conversão se a hipótese for de medida cautelar (daquelas não deferíveis de ofício) em vez da tutela antecipada ou específica, devendo o juiz, neste caso, facultar ao autor a emenda da inicial, pois, se assim não fizer estará decidindo extra petita(7).

Outro aspecto de suma relevância para o presente estudo encontra-se na atuação volitiva do homem como óbice ao alcance da tutela específica.

Durante longo tempo estabeleceu-se a vontade humana como limite intransponível ao cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer. Assim, historicamente, a vontade do homem, mesmo que reconhecidamente devedor de uma prestação in natura, era intangível. Decorrente dessa premissa, ficou consagrado o princípio insculpido no art. 1.142 do Código Civil Francês, de que toda obrigação de fazer ou não fazer inadimplida, resolve-se em perdas e danos. Contudo, a equivalência entre a prestação específica e sua substituição pelo dinheiro, não raro, deixa ao desabrigo o conteúdo daqueles direitos que efetivamente não possuem valor econômico ou patrimonial, como os de cunho personalíssimo (direito à saúde, à imagem, à intimidade, etc.). “Do que adianta”, afirma Thereza Alvim, “para alguém que tem a saúde de sua família e a sua abalada por poluentes de indústria, que está vizinha de sua moradia, não pare esta de poluir o ambiente mas o indenize em pecúnia?” (8).

Mesmo antes de qualquer alteração no Código de Processo Civil, entendendo não ser atentatório à dignidade humana fazer cumprir sua manifesta vontade, a lei processual já encampava dispositivos, consubstanciados nos arts. 639 e 641, através dos quais a decisão judicial supria a vontade do contratante, produzindo os efeitos da declaração não emitida.

 Nessas hipóteses, a legislação processual fornecia a tutela específica, em casos que a certificação do direito, realizada no processo de conhecimento, e sua execução forçada mantinham a efetividade da prestação mesmo depois de passado o lapso temporal compreendido entre a demanda e a prestação jurisdicional. Nos demais casos, ainda que infungível a obrigação, restava ao credor da obrigação de fazer ou não fazer a resignação pelo sucedâneo pecuniário.

Hoje, no entanto, superado em parte o mito da nulla executio sine titulo, está definitivamente integrada a nossa cultura a idéia de que a tutela específica não fere a dignidade da pessoa humana, mas, ao contrário, vai ao seu encontro, prevalecendo o entendimento de que a alteração prática ilegítima dessa vontade é que não merece a proteção do direito. Assim, o legislador fez incluir meios de coerção (multa cominatória) e meios de sub-rogação (§ 5º, art.461, CPC) para privilegiar a efetividade da tutela específica.

Antolhe-se, pois, do exposto, a elevada relevância da tutela específica das obrigações de fazer ou não fazer, do art. 461 do CPC, verdadeiro primor da efetividade do processo, da superação dos óbices conservadores de ordem processual e da garantia de obtenção de tudo aquilo que o titular de um direito deve, pelo exercício pleno da justiça, obter.